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Anomia | LÍCIUS BOSSOLAN

Centro Cultural Correios Rio

Entre 05 de dezembro de 2019 a 26 de janeiro de 2020

de terça-feira a domingo, das 12h às 19h

Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro.

Rua Visconde de Itaboraí, 20 – Centro/Corredor Cultural.

ANOMIA

Texto de Arthur Valle, Prof. Dr.  em História da Arte UFFRJ

 

Silêncio, melancolia, introspecção, alheamento. Embora o tradicional gênero do retrato predomine na exposição Anomia de Lícius Bossolan, as personagens de suas pinturas frustram as expectativas de quem desejar conhecê-las melhor. São, no geral, mulheres, jovens, belas. Mas a exibição de seus rostos e corpos, ressaltada por fortes contrastes de claro-escuro, conflita com a relutância em revelar suas vidas interiores. Olhares de alienação ou desconforto se somam a adereços e gestos estranhos; um ensimesmamento profundo domina certas figuras; já outras deliberadamente ignoram o espectador, virando suas costas ou escondendo seus rostos. A própria materialidade das obras participa, de maneira irônica, desses jogos de ocultamento. Algumas são pintadas sobre gavetas de madeira, cuja antiga função de guardar documentos ou objetos é pervertida, tal como nos ready mades dadaístas. Penduradas nas paredes, as gavetas agora se abrem para o público e exibem seus interiores, mas apenas para revelar expressões e poses cujo sentido é insondável.

 

Tal mistério contrasta com o estilo em que as obras são pintadas. Formado na Escola de Belas Artes da UFRJ, Lícius não dissimula seu virtuosismo e erudição. O realismo de seus retratos se nutre da arte da fotografia e amplia as possibilidades da mesma, tal qual o realismo de artistas contemporâneos como o alemão Gerhard Richter. Pintores mais antigos são também evocados, especialmente mestres europeus do séc. XVII. Ver para crer, por exemplo, cita A Incredulidade de São Tomé (1601-02) do italiano Michelangelo Merisi, dito Caravaggio, e Olhar lembra uma versão contemporânea da famosa Moça com o brinco de pérola (1665), do holandês Johannes Vermeer. Todavia, mais do que gestos de reverência, tais citações são a base para criações autônomas. Um exemplo é a obra Narciso, que dialoga com a pintura homônima de Caravaggio mas suscita conotações bem diversas: o rosto da personagem se reflete não em algum rio mítico, mas sim na tela de um prosaico Ipad, remetendo para o culto da autoimagem tão característico das selfies que saturam nossas redes sociais.

 

Intrinsecamente contemporâneo é também o mal-estar que emana desse e de outros quadros.  A personagem de Narciso nos fita com olhos apreensivos e pousa sua cabeça como um Isaque ou um S. João Batista caravaggesco, prestes a ser imolado. Com efeito, uma ameaça irrepresentável pesa sobre as figuras de Anomia e insidiosamente se insinua em elementos das pinturas: a escuridão quase onipresente; os céus carregados de nuvens plúmbeas; os mares densos, como que contaminados por manchas de petróleo. As obras apontam para o holocausto climático que é fruto das dinâmicas extrativas e acumulativas de um capitalismo agonizante. Mas tal holocausto é também cultural. No fundo de Ver para crer, um edifício arde: trata-se de uma referência à Catedral de Notre-Dame em Paris que, em abril de 2019, foi atingida por um terrível incêndio - semelhante àquele que, meses antes, destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em sua alienação, as personagens não notam (ou pouco se importam?) com as águas que sobem ou com os monumentos que queimam. Sublinha-se, assim, o sentido último de anomia, conceito que dá título à mostra e que, como explicado por Émile Durkheim ou Jean Duvignaud, é secretado por sociedades em crise, incapazes de fornecer qualquer orientação moral fixa para seus indivíduos.

 

Por essa visada pouco otimista, a atual exposição de Lícius Bossolan poderia ser entendida como uma imensa vanitas contemporânea: as belas carnações que o artista pinta vão definhar, como bem nos adverte o esqueleto no centro de A cética; a escuridão pode, de um momento para outro, engolfar a luz que ainda luta para iluminar as cenas. Para nós que visitamos a mostra, uma escolha parece, portanto, se impor: vamos permanecer alienados, assim como as figuras brilhantemente pintadas nas obras? Ou vamos atentar para seus presságios e tentar evitar o abismo de cuja beira nos aproximamos?

Arthur Valle

23 de novembro de 2019

 

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TEXTOS POR

Arthur Valle (texto curatorial)

Martha Werneck (divulgação)

 

MONTAGEM e CURADORIA

Licius Bossolan

Martha Werneck

 

ORGANIZAÇÃO e DESIGN

Martha Werneck

 

AGRADECIMENTOS

 

Ao Centro Cultural Correios RJ,

em especial ao Sr. Ednor Medeiros e equipe

 

A Arthur Valle, pela generosidade ao escrever

o texto curatorial para essa mostra

 

Ao grupo de pesquisa “O corpo como poética

na pintura contemporânea”

 

Aos colegas, mestres e estudantes da Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Aos meus pais, Lício e Maria Amélia

 

AGRADECIMENTO ESPECIAL AOS RETRATADOS

Alessandra Tolc, Ana Clara Guinle,

Bárbara Lopes, Beatriz Bukowitz,

Kelly Castelo, Lavínia Tiburski,

Luana Manhães, Mariana Dias,

Martha Werneck, Monique Queiroz,

Vanessa Tiburski (Fada), Victor Antônio de Araújo.

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